Sunday 16 May 2010

Poetry of Agostinho Neto (Portuguese)

Agostinho Neto: um poeta na encruzilhada*
(David Brookshaw, Universidade de Bristol, Reino Unido)


É talvez inevitável que o nome de António Agostinho Neto tenha sido referido como sendo a mais alta expressão poética de ‘angolanidade’ e, de certa forma, o fundador da moderna poesia angolana. A sua posição como líder do MPLA, o partido histórico nacionalista, e primeiro presidente de Angola o torna incontestavelmente o pai político da nação. Porém, a noção de angolanidade como expressão cultural e literária é mais problemática numa época como a nossa, caracterizada por conceitos de multi-culturalismo e de pluralidade, e quanto mais dado que a ideia de uma nação angolana, cujas fronteiras foram impostas pelas potências colonizadoras no século 19, quase não existia até que Agostinho Neto e os intelectuais da sua geração começaram a imaginá-la. Não devemos esquecer que esta noção da angolanidade nasceu numa altura muito específica – 1948 e a criação de um movimento cultural cuja frase chave era “Vamos descobrir Angola” –, num lugar - Luanda (desde o século 16 a capital e ponto de encontro das diversas culturais angolanas e a cultura portuguesa . Esta ideia de angolanidade evoluiu mais tarde em Portugal, primeiro na liberdade vigiada da Casa dos Estudantes do Império em Lisboa, depois na cela das prisões pelas quais Neto passou. É significativo, portanto, que a angolanidade de Neto se baseia naquilo que ele via como denominador comum para todos os angolanos, mais do que as diferenças culturais e étnicas: trata-se de uma Angola vista essencialmente do exílio e através da memória. É uma nação víctima do colonialismo, mas culturalmente, é uma Angola de compromisso, baseado no cadinho cultural do litoral e centrado em Luanda. Era esta ideia de uma Angola como síntese que facilitou, para Neto e a sua geração, uma visão da angolanidade como processo, do que como um estado de espírito já existente e à espera de ser atingido. Poderíamos acrescentar que esta visão cultural se encaixava com o marxismo político de Neto mais, fundado em noções de evolução histórica e a luta dialéctica – isto é uma Angola em gestação.

Ao considerarmos a angolanidade de Neto como processo, convém recordar a organização editorial da colecção Sagrada esperança, já que a sequência de poemas segue uma ordem ou uma evolução cuja prioridade é política, começando com poemas sombrios que focalizam o sofrimento do contratado (“Partida para o contrato”), o escravizado que perdeu a “noção de ser” (“Velho negro”), a quitandeira (“Meia-noite na quitanda”), e o povo explorado e discriminado dos bairros de lata dos arredores de Luanda (“Sábado nos musseques”). Segue-se aquilo que se poderia denominar secção central caracterizada por poemas que oferecem alguma esperança no meio das crueldades do colonialismo, ou evocativos de uma ira suprimida mas pronta para estalar e induzir transformações (“Para além da poesia”, “Desfile de sombras”, “Aspiração”), ou que invocam a energia e vitalidade da cultura africana, como nos poemas “O caminho das estrelas” e “Na pele do tambor”. A colecção atinge o seu impacto maior com poemas como “O içar da bandeira” e “Havemos de voltar” (este um dos últimos que escreveu durante a sua estadia na prisão do Aljube em 1960), que referem explicitamente à futura independência nacional. O motivo desta sequência editorial e de certa forma cronológica dos poemas é de mostrar a evolução de um processo de conscientização política e social em que o sentimento de alienação é vencido, e a luta iniciada rumo a um sentido mais pleno de angolanidade.

Convém agora ponderar o caráter da alienação que afetava Neto. É relativamente fácil distinguir a alienação dos contratados, das mulheres obrigadas a vender laranjas na rua à meia-noite por uns magros tostões, e dos habitantes dos musseques que buscam no alcool alguma consolação pela dureza da sua vida. No entanto, Neto, como assimilado, sofre de outro tipo de alienação – um desenraizamento cultural. Não estamos a minimizar o patriotismo de Neto ao dizer que, culturalmente, ele pertencia a dois mundos e que talvez se sentisse, por formação mais perto do mundo urbano ocidental. Outros críticos já apontaram as especificidades do colonialismo português, mais parecido com o modelo francês no valor que dava à aculturação total de uma intelectualidade indígena, como a principal razão porque a luta de libertação das colónias portuguesas começou com movimentos literários e uma tentativa de criar uma consciência cultural . Neto não era excepção, mas a ambiguidade que ele sentia em relação à expressão poética do desejo de libertação é complexa e interessante. Aqui temos Neto, o maior poeta de libertação angolana, e um dos mais conceituados poetas africanos daquela era, escrevendo poemas sobre as limitações da poesia. Por um lado, tinha uma atitude romântica, muito próprio do século 19, em relação ao poeta como bardo profético, alguém com uma sensibilidade única, atitude implícita em alguns dos seus versos, incluíndo o poema “Adeus à hora da largada”, que abre a coleção. Com maior frequência, o poeta é visto implicitamente como falso, insincero nas suas protestações de solidariedade com o povo (como, por exemplo, em “Velho negro”), ou então angustiado ao pensar na incapacidade do seu compatriota iletrado de entender os seus versos (“Mussunda amigo”). Por outro lado, a incapacidade da poesia de expressar aquilo que o poeta pretende, paradoxo muito típico dos modernistas – sendo o caso de Fernando Pessoa talvez o mais explícito – aparece em outros poemas, tais como “Além da poesia”, em que Neto aproxima a noção da poesia à da acção concreta de uma futura revolução africana, ou nos versos mais meditativos de “Poema”, escrito na prisão, em que pondera sobre a capacidade da poesia de comunicar uma mensagem clara e inequívoca. Para manter a analogia com Pessoa, ou mais propriamente com o heterónimo pessoano, Alberto Caeiro, a poesia é inimiga da claridade, um instrumento que cria confusão. Afinal, para Neto, a poesia só teria sentido quando a guerra já tivesse sido ganha, quando a alma dividida dos colonizados tivesse sido reunida e a “noção de ser” readquirida. Nessa altura, a poesia poderia ser reincorporada numa Angola livre e independente (imaginada, por exemplo, em “A voz igual”).

O mesmo se poderia dizer da ciência e da tecnologia. Durante o colonialismo, tal como a poesia, a tecnologia funciona como instrumento de opressão. O “Comboio africano” metaforiza a penetração colonial do interior angolano, mas é também um microcosmos da Angola sob dominação estrangeira, constrita entre os ‘rails’ e a seguir o seu percurso lento e caricato. Por outro lado, as ciências, postas ao serviço da liberdade e do progresso, são outras. O contraste é evidente entre a visão irónica em “O comboio africano” ou em “Civilização ocidental”, e “Um aniversário”, um dia cuja finalidade é celebrar a formatura de Neto em medicina, mas colocada contra um pano de fundo de opressão em Angola e em outras partes do mundo. Apesar disso, a aparente inutilidade desse dia é vista como necessária, já que constitui um passo no caminho da liberdade ao criar mais um angolano qualificado daquela geração de angolanos “por quem se espera”. A ideia da construcção concreta da independência, mesmo dentro de um contexto de negação, ocorre como tema consistente na poesia de Neto, mas atinge uma expressão mais explícita em “A voz igual”, poema em que a indústria e energia dos angolanos são apresentadas como sendo mais poderosas do que o chicote dos capatazes colonialistas. Trata-se da vitória de valores permanentes de justiça e igualdade sobre o estado temporário de escravidão: os primeiros são naturais, o segundo artificial. Da mesma forma, a busca do conhecimento e do progresso científico é um instincto natural humano, que contrasta com a civilização tecnológica imposta em Angola para oprimir os angolanos. O mesmo se poderia dizer da poesia: dependendo da causa e das condições, é uma força para o melhor ou para o pior.

Quais são as raizes culturais que foram perdidas? Qual é a poesia que não é produto da alienação? Para isso, Neto recorreu a várias fontes literárias, em particular, a poesia negra americana que surgira do renascimento afro-americano dos anos 20 e produzira figuras como Countee Cullen e Langston Hughes, a poesia da negritude dos países francófonos, tudo filtrado, pelo menos no início, através de Francisco José Tenreiro, presença incontornável para os jovens estudantes africanos que chegavam a Lisboa nos anos 40 e 50. Nem devemos esquecer a influência do afro-cubano, Guillén, e especialmente da poesia afro-brasileira dos modernistas, entre os quais podemos incluir um poeta há muito esquecido, mas bem conhecido de uma certa geração de angolanos: Solano Trindade. A angolanidade poética de Neto tem como prioridade a valorização dos ritmos e da musicalidade africana-angolana, a natureza africana, e a solidariedade com a diáspora africana e com os escravizados no mundo. A sua poesia é resposta à situação no seu país e à tendência anti-colonial, expressada do exílio, em Portugal, e influenciada pelos modelos literários e poéticos africanos ou afro-americanos então prevalentes, o que não subtrai nada da originalidade ou do impacto dos seus versos.

Ao mesmo tempo, a organização dos poemas em Sagrada Esperança, empresta à colecção uma qualidade de narrativa pessoal e autobiográfica que acompanha o desenvolver do drama angolano rumo à guerra e à independência. Começando com a partida do poeta (que é também a partida de toda uma geração de assimilados) para o exterior, presenciamos Agostinho Neto na sua graduação, no seu romance com a pessoa que viria a ser sua esposa, na nostalgia que sentia pela terra-mãe, na consciência que tinha de eventos marcantes em outras colónias africanas (“Massacre em S. Tomé”, “Bamako”), nas mudanças que notou ao voltar para Angola (“O içar da bandeira”), e por fim no seu segundo exílio e encarceramento.

Em conclusão, a angolanidade de Agostinho Neto é a manifestação de uma luta complexa entre a experiência pessoal do poeta e o drama da colectividade de oprimidos, numa época crucial de formação da nacionalidade não só em Angola mas em outros territórios ainda sob dominação imperialista. A cultura angolana é comunicada no ritmo e nas referências culturais de muitos dos poemas. As referências à cultura brasileira e muito especialmente afro-brasileira na sua obra colocam Neto dentro de uma tradição afro-lusa/atlântico-tropical, e se há remanescentes brasileiros nos seus versos, a corrente de influências tem se movimentado no sentido contrário desde a independência política de Angola em 1975, com o reconhecimento de Agostinho Neto por parte de toda uma geração de poetas negros brasileiros. Ao mesmo tempo, a presença de uma voz profética e quase bíblica nos seus poemas, atribuída por alguns à sua formação protestante, mas que no entanto tem talvez outra origem no romantismo libertário do século 19 (a poesia de Castro Alves, por exemplo), o questionar pessoano do valor e da capacidade da poesia para representar a realidade, e até num poema como ‘Partido para o contrato’, algum eco da lírica medieval portuguesa (as cantigas de amor e amigo), tudo coloca a obra deste poeta dentro de uma tradição poética lusófona e ocidental . Com isto, não estamos a tentar recolonisar a angolanidade de Agostinho Neto, senão apontar a sua riqueza polifônica.

*Text of a paper given at a conference dedicated to the figure of Agostinho Neto, and held at the University of Rome La Sapienza, November 2002.

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